5 de out. de 2016

D. Penal: Calúnia (art. 138)

Calúnia

Autores: Elisabeth Mendes Pedrosa e Roberto Borba

Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.


§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.


§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.


Exceção da verdade


§ 3º - Admite-se a prova da verdade, salvo:


I - se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível;


II - se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141;


III - se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível.


Introdução

O crime de calúnia está presente no capitulo V do Código Penal Brasileiro, que trata dos crimes contra a honra, incluindo os delitos de difamação e injúria.


Honra, no conceito preciso de Damásio de Jesus (1993, p. 175), é "o conjunto de atributos morais, físicos, intelectuais e demais dotes do cidadão, que o fazem merecedor de apreço no convívio social". Entende-se, portanto, que honra é um conjunto de características subjetivas inerentes ao indivíduo, promovendo sua autoestima, moralidade, virtudes e moldes de caráter na condução da vida pessoal, social e profissional. Assim, a fim de que haja respeito nos relacionamentos, é necessário abandonar atitudes ofensivas à honra alheia, visto que este é um bem jurídico protegido, incomensurável, inclusive tutelado constitucionalmente.

A Constituição Federal/88, em seu art. 5º, X, traz a honra como um direito fundamental inviolável, assegurando a percepção de indenização pelo dano material ou moral, decorrente de sua violação. A honra pode ser objetiva ou subjetiva. Esta, é a auto-percepção do eu em sua própria dimensão interior, o reconhecimento de seus valores, ou seja, a forma como o ser se vê. Aquela, é a percepção que outros têm de alguém, é a imagem que outros constroem em si sobre outrem. Tal distinção é relevante, pois, mesmo que uma pessoa não se sinta abalada em sua honra subjetiva, ela pode encontrar proteção penal sobre aquelas condutas delituosas que desonram sua imagem perante a sociedade. A calúnia é o crime que agride a honra objetiva. 

Em relação ao consentimento do ofendido, Prado esclarece que "a honra é um bem jurídico disponível. O consentimento do ofendido, in casu, figura como causa de justificação, excluindo a ilicitude da conduta" (2010, p. 1


Conceito de calúnia

Define o art. 138: 'caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime. Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa'.


Caluniar é atribuir a alguém fato inverídico, definido como crime, denegrindo sua imagem diante de outros. O Código fala em 'fato', sendo necessário que o agente traga em sua conduta a narração inidônea de um acontecimento, de determinado episódio ocorrido no tempo e no espaço, pois, como explica Nucci, "costuma-se confundir um mero xingamento com uma calúnia. Dizer que uma pessoa é 'estelionatária', ainda que falso, não significa estar havendo calúnia, mas sim uma injúria. O tipo penal do art. 138 exige a imputação de fato criminoso, o que significa dizer que 'no dia tal, às tantas horas, na loja Z, o indivíduo emitiu um cheque sem provisão de fundos" (2016, p. 820). 


No Código não há sentidos soltos, as palavras possuem sequências lógicas que definem o contexto dos crimes, e, falando-se em calúnia, é necessário a narração do fato ocorrido. Em uma outra perspectiva conexa, fazer referência às denominações penais também não caracteriza o delito de calúnia. Dizer, por exemplo, que Fulano praticou um estupro, não configura o delito, pois não há a menção concreta, específica e precisa do fato, do acontecimento, do episódio derivado da conduta do 'estuprador'. Importante salientar que, para ser calúnia, além da descrição do fato falso pelo agente, este fato deve ter correspondência a um tipo penal incriminador do Código Penal. 


A definição de calúnia no art. 138 menciona que o fato tem de ser definido como crime, o que significa que se o agente narra uma contravenção penal, afasta-se a imputação por calúnia. Ensina Mirabete (2015, p. 919) que "a imputação da prática de uma contravenção não constitui calúnia, mas pode caracterizar o delito de difamação". 


Sujeitos do crime 


Sendo um crime comum qualquer pessoa pode praticá-lo. No polo passivo está apenas o ser humano, por dois motivos: primeiro, que somente a pessoa humana pode praticar fato definido como crime, e, segundo, que o artigo penal fala em alguém, afastando a possibilidade da pessoa jurídica ser sujeito de calúnia. Nessa linha de entendimento encontra-se Mirabete (2015, p. 918). Contudo, há correntes doutrinárias que entendem que a pessoa jurídica pode ser também sujeito passivo no delito de calúnia. Nucci (2016, p. 819) faz parte de parcela da doutrina que acompanha tal entendimento. 


Em relação aos inimputáveis figurarem como sujeitos passivos do delito, há divergências doutrinárias. Damásio entende que eles podem ser caluniados, pois, na interpretação do mestre, o fato de considerar crime um fato típico e antijurídico, sendo que a culpabilidade não é requisito do crime, mas pressuposto da pena, leva à conclusão de que os inimputáveis podem ser caluniados (1993). Nucci (2016) e Greco (2008) também admitem que inimputáveis podem ser vítimas do delito de calúnia, pois compreendem que o Código fala em imputação a alguém de fato definido como crime, e não singelamente na atribuição de crime. Na mesma posição está Rogério Sanches (2012). Já Noronha (1972, p. 113 apud SANCHES, 2012, p. 172) não compartilha desse entendimento e explica que "a verdade é que, diante de nossas leis, o menor de dezoito anos não pratica crime, e, portanto, este não lhe pode ser imputado. Diga-se o mesmo dos enfermos mentais. Como para aquele, falta-lhes imputabilidade penal e, consequentemente, não podem ser caluniados. O fato a eles atribuídos será difamação (...)". 


É punível a calúnia contra os mortos por expressa previsão legal (§ 2º do artigo em comento). O morto não pode ter sua honra afetada, pois não é capaz de 'sentir', mas podem ter a sua memória maculada, desprestigiada, desonrada. Sendo assim, sujeito passivo do crime seriam os parentes.


Meios de execução


É um crime de ação livre, podendo ser praticado por palavras, escritos, gestos e até mesmo meios simbólicos. 


Elemento subjetivo do tipo


É o dolo. Não há previsão legal à forma culposa para o crime de calúnia. Para o delito ser configurado, é necessário ter-se consciência de que se está ofendendo, falsamente, a vítima, atribuindo-lhe fato definido como crime. O agente tem que ter a certeza consciente que o que atribui não corresponde a verdade, ou seja, deve haver o dolo, a intenção de ofender a honra da vítima. Consuma-se a infração também no dolo eventual. Mirabete elucida que "a dúvida a respeito da autenticidade do fato relatado caracteriza o crime por ter o agente assumido o risco do resultado" (2015, p. 923). 


Consumação 


Consuma-se o delito quando da percepção de terceiro(s) sobre o fato atribuído à vítima falsamente, ou seja, se terceiro ouviu, leu ou percebeu de alguma forma a calúnia, consumado está o crime. Sendo um crime formal, é irrelevante que a vítima tenha se sentido abalada em sua honra, pois a própria conduta de caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime, já configura o delito. Uma observação é que se a calúnia é imputada de forma direta e exclusiva à vítima, não há crime de calúnia, e sim injúria, pois, como leciona Nucci, "ofendeu-se somente a honra subjetiva" (2016, p. 822). 


A calúnia verbal não admite tentativa, mas é possível configurar tentativa quando a calúnia for escrita, como descrito no exemplo de Damásio (1993, p. 188): "o sujeito remete uma carta caluniosa e ela se extravia. O crime não atinge a consumação, por intermédio do conhecimento do destinatário, por circunstâncias alheias à vontade do sujeito". 


Propalação e Divulgação


O § 1º do artigo ora analisado diz que 'na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga'. Damásio ensina que "propalar é relatar verbalmente. Divulgar é relatar por qualquer outro meio" (1993, p. 188). Nesse caso de propalar e divulgar é indispensável que o propalador ou divulgador tenha a consciência da falsidade do fato que lesa a imagem da vítima. No caso daqueles que propalam ou divulgam, "havendo dúvida (dolo eventual), inexiste o crime" (MIRABETE, 2003, p. 158). Sendo assim, aquele que inventou o fato falso é punido, como também é punido aquele que circulou a informação estando consciente da inverdade da mesma. 


Exceção da Verdade


Nos termos do § 3º, admite-se a prova da verdade, ou seja, se o fato atribuído ocorreu, não há que se falar em imputação falsa. Contudo, há três situações que não são admitidas a prova da verdade, mesmo que verdadeiros os fatos. São elas: 


a) se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível (inciso I).


Fala-se em ação privada porque, como explica Sanches (2012), a vítima do crime praticado pelo caluniado preferiu o silêncio e não quis entrar em ação contra o agente. Ou, na hipótese de ter havido ação penal, ainda não houve condenação definitiva, pois, se houver, é admitida a exceção da verdade. 


b) se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141 (inciso II). 


As pessoas indicadas no inciso I do art. 141 são o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro. "Razões políticas e diplomáticas ditam a pertinência da ressalva aqui estudada" Sanches (2012, p. 176). 


c) se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível (inciso III). 


O caluniador, que responde a processo movido pelo caluniado, não pode provar que o fato definido como crime é verdadeiro, se sobre esse fato, de ação pública, a vítima foi absolvida por sentença irrecorrível. Seria incoerente admitir a exceção da verdade quando o próprio Estado absolveu o ofendido (em sentença irrecorrível),  constituindo um ataque frontal à coisa julgada. Destaca Prado que "a essência dessa proibição reside no respeito inarredável à coisa julgada (2010, p. 194). 


Causas de aumento de pena


De acordo com o art. 141, as penas aumentam de 1/3 (um terço) se a calúnia é cometida:


a) contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro (inciso I). 

b) contra funcionário público, em razão de suas funções (inciso II). 
c) na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria (inciso III). 
d) contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência (inciso IV). 

O parágrafo único do art. 141 assevera que 'se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa, aplica-se a pena em dobro'. Ou seja, se a calúnia for cometida por motivo torpe, a pena será aplicada em dobro. A torpeza é combatida de forma mais contundente pelo Código Penal. 


Exclusão do crime


O art. 142 traz em seus incisos hipóteses que excluem a ilicitude da conduta, porém a calúnia não está contemplada entre tais hipóteses, pelo fato do Estado ter interesse em esclarecer fatos tidos como criminosos. 


Retratação 


Explica Sanches que retratar-se "é escusar-se, retirando do mundo o que afirmou, demonstrando sincero arrependimento" (2012, p. 190).  


A calúnia admite retratação. Diz o art. 143 que 'o querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena'. É uma chance do querelado se afastar das garras da punição. Contudo, a retratação é aceita no momento processual adequado, ou seja, se feita após a sentença, nenhum efeito terá. 


O parágrafo único do mesmo artigo citado declara que 'nos casos em que o querelado tenha praticado a calúnia ou a difamação utilizando-se de meios de comunicação, a retratação dar-se-á, se assim desejar o ofendido, pelos mesmos meios em que se praticou a ofensa'. Assim, se a calúnia se deu por nota em jornal, exemplificando, a retratação, se assim quiser o ofendido, pode se dar também pelo mesmo meio.


Pedidos de explicações 


Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa (art. 144). 


Quando aquilo que é dito pelo autor tem um sentido vago, duvidoso, ambíguo, compreendendo a pessoa que se sente ofendida ser uma calúnia, difamação ou injúria, pode ela pedir explicações em juízo. Mirabete esclarece que "é uma medida preparatória e facultativa para o oferecimento da queixa, quando, em virtude dos termos empregados ou do sentido das frases, não se mostra evidente a intenção de caluniar, difamar ou injuriar, causando dúvida quanto ao significado da manifestação do autor, ou mesmo para verificar a que pessoa foram dirigidas as ofensas" (2015, p. 979).  


No caso do autor da calúnia se recusar a dar as explicações, ou se as der e o juiz entender que não foram satisfatórias, responde ele pela ofensa. 


Ação penal 


No caso de calúnia, é crime de ação penal privada. 


Referências


GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Especial. v. 2. 5. ed. Niterói: Impetus, 2008. 


JESUS, Damásio E. Direito Penal. Parte Especial. v.2. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1993. 


NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 16. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. 

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal II. Parte Especial. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

______. Código penal interpretado. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2015

NORONHA, Edgar Magalhães. Direito Penal. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1972.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v. 2. 8. ed. rev., amp. e atual. Maringá: Revista dos Tribunais, 2010

SANCHES, Rogério. Curso de Direito Penal 2. Parte Especial. 4. ed. rev., amp. e atual. Salvador: JusPodivm, 2012. 

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